quarta-feira, 9 de setembro de 2009

ETERNA SAUDADE

O MOLDE DO ESTOICISMO
O tempo que tenho como enfermeiro de cabeceira -e já lá vão uns bons trinta anos- colocou perante mim inúmeros exemplos de férrea vontade de viver de pacientes que um dia tiveram que enfrentar situações clínicas de mau prognóstico, assim julgadas pelos médicos, levando sempre a melhor perante o ar incrédulo do corpo clínico e ultrapassando tudo o que a ciência até agora estabeleceu como verdade e que ainda não terá conseguido explicar. Mas o exemplo dado por um doente ultrapassou tudo o que até hoje presenciei.

Tudo começa, mais ou menos, há 10 anos quando lhe é diagnosticado um carcinoma da laringe. O mundo de repente desaba para a família, mas para o doente não é mais que um problema que tem que ser superado pois dele extravasa a vontade de viver contra tudo e contra todos. Depois de prolongados tratamentos surpreende-nos a superação da doença, iniciando, imediatamente, e após alta clínica, aquilo que mais gostava de fazer que era leccionar, apesar da disfunção das cordas vocais que o manteve, desde o momento da cirurgia, sem voz.

Dois anos depois é surpreendido por nova cobarde doença, um carcinoma da próstata. E quando todos esperávamos que cedesse, lá estava ele a desfraldar a bandeira do optimismo, evocando a vontade de viver, fosse como fosse. Estávamos perante um vencedor, um campeão, que demonstrava aos arautos da desgraça que as dificuldades que nos surgem na vida não são mais que espoletas que nos mostram que, de facto, estamos vivos e que a vida só pode ser vivida com entusiasmo quando nela surgem os percalços.

Como se já não bastasse, no passado mês de Julho, nova doença carcinomatosa, desta vez na base da língua, desafia o homem que, por duas vezes, tinha ultrapassado, com distinção, situações de enorme gravidade. Novamente lá estava ele afirmando-se como homem de exemplo a seguir, apontando o caminho do estoicismo, do optimismo e da esperança. Apercebe-se da gravidade da situação e sempre que o visito olha-me nos olhos, e com um gesto muito seu, com o dedo polegar apontando o céu, dizia, "Zé, não te preocupes que estou bem. Isto vai!"

Lá estava ele a consolar-me quando deveria ser eu a fazê-lo. Que exemplo surpreendente! Quando eu e todo o corpo clínico temia que cedesse a uma insuficiência renal aguda, agravada por uma disfunção cardíaca, consequência do tratamento instituído, este surpreende tudo e todos com uma recuperação notável, levando mesmo o seu médico assistente a propor-lhe alta clínica.

Contudo, o herói, fatidicamente, cede a um colapso cardíaco inesperado, levando-me a questionar, novamente, sobre a justiça divina. Imediatamente afasto a raiva que cresce em mim, compensando-me com a ideia que Deus levou-o por compaixão, dizendo: “Está cumprida a tua missão. Deste o exemplo e desta lição de vida quem quiser tire dela o proveito que bem entender”.

Fica aqui a homenagem e eterna saudade por quem um dia, carinhosamente, invadiu o meu espaço e de quem eu sentia ciúmes e uma imensa raiva por se ter apropriado do coração da minha irmã mais velha, a adorável Olívia. Esse homem era o meu estimado cunhado e um amigo de há muitos anos. Perdi um amigo, mas uma coisa é certa, a sua amizade permanecerá para sempre no meu coração.

Se há alguém que mereça estar em lugar privilegiado junto a Deus és tu Carlos. Deste-nos um tremendo exemplo de vida, demonstrando que esta tem que ser vivida mesmo em evidente sofrimento.

Vergo-me perante ti José Carlos Moreira Traguedo.
Até um dia meu amigo.

»»»LER TAMBÉM - Murmúrios de saudade
                          - Perdi um amigo

Sem comentários:

Enviar um comentário

Pesquisar neste blogue